VOTO DO MINISTRO CELSO DE MELLO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM

  Voto proferido no julgamento do RE, disponibilizado pelo ministro Celso de Mello.                                              TRIBUNAL PLENO

 

 

 

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Peço vênia para dissentir dos eminentes Ministros Relator, CARLOS BRITTO, e MARCO AURÉLIO, pois, em recentíssima decisão que proferi sobre a matéria ora em exame, manifestei entendimento no sentido de que compete à Justiça dos Estados-membros e do Distrito Federal, e não à Justiça do Trabalho, o julgamento das ações de indenização por danos materiais e/ou morais resultantes de acidente do trabalho, ainda que fundadas no direito comum e ajuizadas em face do empregador.

 

Cumpre assinalar que tem sido tradicional, no sistema jurídico brasileiro, o reconhecimento, em sede constitucional (CF/46, art. 123, § 1º – CF/67, art. 134, § 2º – CF/69, art. 142, § 2º, e CF/88, art. 109, I, “in fine”), da competência da Justiça comum dos Estados-membros e do Distrito Federal para o processo e julgamento das causas de índole acidentária. Daí a orientação sumular firmada pelo Supremo Tribunal Federal, que, na matéria em questão, deixou registrada a seguinte diretriz: “Compete à Justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista” (Súmula 501grifei).

 

Os litígios relativos a acidentes do trabalho – expressão esta que designa, consoante acentua PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo IV/275, 2ª ed., 1974, RT), “quaisquer questões ou composições (…), ainda quando se incluam em regramento de contratos coletivos de trabalho” – não se expõem, por isso mesmo, à competência da Justiça do Trabalho.

 

Esse entendimentoque se aplica às ações de indenização por acidente do trabalho, quer as ajuizadas contra o INSS, quer as promovidas contra o empregador (ainda que fundadas no direito comum) – vem sendo observado pela jurisprudência desta Corte, tanto em acórdãos emanados de seu Plenário e de suas Turmas quanto em decisões monocráticas proferidas por seus eminentes Juízes (AI 218.380-AgR/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – AI 344.192/MG,Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – AI 524.411/MG, Rel. Min. EROS GRAU – AI 526.410/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES – AI 527.105/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 176.532/SC, Rel. p/ o acórdão Min. NELSON JOBIM – RE 351.528/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 388.304/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 444.302/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

 

Competência: Justiça comum: ação de indenização fundada em acidente de trabalho, ainda quando movida contra o empregador.

1. É da jurisprudência do STF que, em geral, compete à Justiça do Trabalho conhecer de ação indenizatória por danos decorrentes da relação de emprego, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do direito comum e não do Direito do Trabalho.

2. Da regra geral são de excluir-se, porém, por força do art. 109, I, da Constituição, as ações fundadas em acidente de trabalho, sejam as movidas contra a autarquia seguradora, sejam as propostas contra o empregador.”

(RTJ 188/740, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO CIVIL. DEMANDA SOBRE ACIDENTE DE TRABALHO. COMPETÊNCIA. ART. 109, I DA CONSTITUIÇÃO.

1. Esta Suprema Corte tem assentado não importar, para a fixação da competência da Justiça do Trabalho, que o deslinde da controvérsia dependa de questões de direito civil, bastando que o pedido esteja lastreado na relação de emprego (CJ 6.959, rel. Min. Sepúlveda Pertence, RTJ 134/96).

2. Constatada, não obstante, a hipótese de acidente de trabalho, atrai-se a regra do art. 109, I da Carta Federal, que retira da Justiça Federal e passa para a Justiça dos Estados e do Distrito Federal a competência para o julgamento das ações sobre esse tema, independentemente de terem no pólo passivo o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS ou o empregador. (…).”

(RE 345.486/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE – grifei)

 

Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal advertiu, no tema ora em análise, que não se revela suficiente, para reconhecer-se a competência da Justiça do Trabalho, que a controvérsia entre o trabalhador e o empregador se origine da relação de trabalho, impondo-se identificar, para efeito de incidência do art. 114 da Constituição, se se trata, ou não, de litígio decorrente de acidente de trabalho, pois, nesta específica hipótese, instaurar-se-á a competência da Justiça estadual:

 

“Na espécie, não obstante cuidar-se de dissídio entretrabalhador e empregador, decorrente da relação de trabalho – o que bastaria, conforme o art. 114 da Constituição, a firmar a competência da Justiça do Trabalho -, há um outro elemento a considerar:pleiteia-se não qualquer indenização por ato ilícito, mas indenização por acidente do trabalho, caracterizado por doença permanente adquirida em decorrência dessa relação de trabalho (…), o que, por si só, afasta a incidência do art. 114, atraindo a competência da Justiça comum, por força do disposto no art. 109, I, da Constituição.”

(RE 403.832/MG, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)

 

Impende insistir, portanto, que, em se tratando de matéria acidentária, qualquer que seja a condição ostentada pela parte que figura no pólo passivo da relação processual (INSS ou empregador), , no que se refere a tais causas, expressa reserva de competência instituída, “ope constitutionis”, em favor da Justiça comum dos Estados-membros.

 

Essa reserva de competência, que tem sido tradicional em nosso sistema de direito constitucional positivo, permanece íntegra, não obstante a superveniência da EC 45/2004. Isso significa, portanto, que ainda remanesce, na esfera de competência da Justiça estadual, o poder de processsar e julgar as ações de indenização por danos morais ou materiais resultantes de acidentes do trabalho, mesmo que a pretensão jurídica nelas deduzida encontre fundamento no direito comum.

 

É por essa razão que entendo revelar-se inaplicável, ao caso, tanto o inciso VI do art. 114 da Constituição, na redação dada pela EC 45/2004, quanto a Súmula 736 desta Corte.

 

Cumpre pôr em destaque, finalmente, ante o seu inquestionável relevo, a observação do eminente Ministro CEZAR PELUSO, consignada em decisão que proferiu no AI 527.105/SPe ora reiterada no presente julgamento -, de que a definição da competência da Justiça estadual, para processar e julgar as causas  acidentárias, repousa em um princípio – o da “unidade de convicção” – que constitui, segundo enfatizou, a “razão última de todas as causas de fixação e prorrogação de competência, de reunião de processos para desenvolvimento e julgamento conjuntos ou pelo mesmo juízo”, verbis:

 

É que, na segunda hipótese, em que se excepciona a competência da Justiça do Trabalho, as causas se fundam num mesmo fato ou fatos considerados do ponto de vista histórico, como suporte de qualificações normativas diversas e pretensões distintas. Mas o reconhecimento dessas qualificações jurídicas, ainda que classificadas em ramos normativos diferentes, deve ser dado por um mesmo órgão jurisdicional. Isto é, aquele que julga o fato ou fatos qualificados como acidente ou doença do trabalho deve ter competência para, apreciando-os, qualificá-los, ou não, ainda como ilícito aquiliano típico, para que não haja risco de estimas contraditórias do mesmo fato. E é exatamente esse o motivo pelo qual não interessa, na interpretação do caput do art. 114, qual a taxinomia da norma jurídica aplicável ao fato ou fatos. Importa, sim, tratar-se de fato ou fatos que caracterizem acidente do trabalho. Ora, a cognição desse mesmo fato ou fatos, quer exija, num caso, aplicação de norma trabalhista, quer exija, noutro, aplicação de norma de Direito Civil, deve ser exclusiva da Justiça Comum, competente para ambos.

O caso em nada se entende com a súmula 736.”

(AI 527.105/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – grifei)

 

Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para acompanhar a divergência iniciada pelo eminente  Ministro CEZAR PELUSO, reafirmando o meu entendimento – recentemente externado em decisão que proferi (RE 371.866/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO) –, no sentido de que assiste, ao Poder Judiciário do Estado-membro, e não à Justiça do Trabalho, a competência para processar e julgar as causas acidentárias, ainda que tenham sido instauradas, contra o empregador, com fundamento no direito comum, tal como sucede na espécie ora em exame.

 

É o meu voto.